"CIDADE DO PECADO"
Forçado
por imperiosas e várias circunstâncias, "BOM-SENSO" ausentou-se da cidade em que
vivia exilando-se em país distante, sem jamais esquecer os seus queridos e
sentindo profundas saudades do lar. Passado muito tempo as saudades aumentaram.
O desejo de rever o seu povo andar no temor de Deus tornou-se muito forte e Bom-senso
resolveu voltar à cidade em que antes morava.
Quando
chegou às portas da cidade, estremeceu sem saber porque. Pensou que tal
estremecimento fosse o efeito produzido pela comoção que sentia ao regressar ao
lar, depois de grande ausência, e não deu maior importância ao fato. Ao
penetrar as primeiras ruas da cidade, sentiu nova e estranha sensação, mas
levou tudo à conta de um sentimento passageiro que breve se desfaria.
Continuou
sua marcha para dentro da cidade. Ao encarar com um tal Loquaz, representante
do povo, notou que não só Loquaz, mas todos os habitantes o olhavam como um ser
estranho e inimigo.
Bom-senso
conhecia as ruas e as praças. Tudo ali lhe era familiar, mas os habitantes não
eram os mesmos. Os costumes estavam mudados. As maneiras do povo estavam em
contraste com a antiga lei de Deus e ofendiam a justiça divina. As grandes
casas de negócio possuíam novos nomes e os artigos agora eram diferentes.
Procurou
alguns amigos que temiam a Deus, os quais haviam ficado na cidade quando ele
partiu, mas que surpresa, uns haviam sido presos e outros expulsos. Um deles, a
Justiça, num dia de remarcada loucura, quando o povo ouviu um discurso de um
chefe de quarteirão que se chama Ódio, foi amordaçada, e levada à praça
pública e ali despojada de sua balança que pesava e julgava com retidão.
Desde então ninguém mais a viu exercendo atividade.
Outro
amigo de Bom-senso, a Verdade, teve que lutar com um tal Trapaça que tinha a
seu serviço todos os servos de Engano. Em razão de os habitantes haverem
seguido a Engano, a Verdade também se ausentou da cidade.
Para Bom-senso
tudo era muito estranho. Pessoas desclassificadas e vis que outrora viviam
segregadas à sociedade, trancafiadas nos calabouços, por serem elementos
perigosos e inimigos de Deus, agora desfrutavam muito prestígio, eram os
grandes e respeitáveis negociantes da praça, expondo suas mercadorias com
tanta manha e técnica diabólica que vendiam arsênico por sulfas, a morte a
troco de prazer, sem que alguém ousasse denunciá-los. Com a partida de todas as
autoridades honestas e que temiam a Deus, o campo ficou aberto a toda a sorte
de aventureiros e inimigos do Senhor.
Foi assim
que Bom-senso, quando procurava seus amigos, encontrou estabelecidos na cidade
os agentes do inferno.
Em um dos
bairros mais populosos, encontrou uni grande estabelecimento que pertencia à
Concupiscência e cujo negócio era muito próspero. A freguesia era grande. Toda
a cidade comprava essa mercadoria, e quanto mais vendia, mais encomendas
recebia, pois havia agradado à turba sem Deus., Como já falamos, ódio também
possuía seu negócio, tão próspero como o de Concupiscência, tendo ainda a
vantagem de ter filiais em outras cidades.
A
Vingança, que tantas vezes fora escorraçada da cidade, agora desfrutava grandes
privilégios na sociedade local. Sua casa era vistosa, sua mercadoria exposta
com muita astúcia; possuía a aparência de verdadeira, e muitos faziam uso dessa
miséria.
A
Soberba, que outrora não era tolerada nem mesmo nos palácios, instalou-se numa
das ruas principais da cidade, e não havia habitante algum que não estivesse
contaminado por essa chaga, e que não ostentasse objetos comprados ali.
Bom-senso
teve sua atenção voltada para o enorme magazine existente na Grande Praça da
cidade. Quando se aproximou, vendo o copioso número de mulheres ali reunidas,
soube que ali estava estabelecida a Vaidade. Na casa de Vaidade, a tagarelice
era tal que o som do vozerio era ouvido a alguns quarteirões de distância. Em
troca de um farrapo pintado, na casa da Vaidade ficavam enterrados e presos o
pensamento altruísta, a virtude, o temor de Deus, o sentimento de família, o
amor aos filhos, etc...
Apesar de
ser maior o número de mulheres que frequentavam a casa da Vaidade, contudo ali
havia de tudo: homens, crianças, moças, moços, todos confundidos em redor de um
bazar satânico que atrai para longe de Deus.
Outro
negócio muito próspero é o dirigido por Desonestidade; tinha representantes
até nas repartições oficiais, e dizia-se à boca cheia que somente os bons cristãos
não eram influenciados por esse cancro social.
Maledicência
atravancava as ruas com sua mercadoria infamante, fazendo concorrência direta
ao negócio de Imprudente.
O Prazer-Mundano
possuía maior cadeia de estabelecimentos no gênero, os quais funcionavam noite
e dia, retendo, escravizados, os habitantes, para que não pensassem em Deus e
se convertessem a Jeová.
A
Covardia, associou-se aos negócios de Malícia, cujo objetivo era lançar na
praça os artigos da última moda produzidos por Calúnia.
A lista
dos negociantes da cidade do pecado, é extensa, por que continuar? De quando
em vez, a farândula infernal deslizava pelas avenidas numa exibição de obras
das trevas, expulsando qualquer virtude que encontrasse em seu caminho.
Bom-senso
ficou muitíssimo admirado com o progresso do Clube da cidade, dirigido por uma
senhora que se chama Hipocrisia. O clube era mais freqüentado por homens do que
por mulheres, porém todos os habitantes possuíam título de sócio, pagavam a
mensalidade, recebiam sua literatura e faziam propaganda de seu programa .
Era neste
clube que se reuniam os políticos de todos os partidos. Era ali que se traíam
uns aos outros entre sorrisos sem côr e apertos de mãos contaminadas. O título
do Clube expressava as finalidades — Hipocrisia — e os sócios, coerentes com os
estatutos do mesmo, para serem bons sócios, eram grandes hipócritas e os melhores,
atraiçoavam os companheiros.
Um dos
negócios mais ativos na cidade pertencia a um sujeito que se chama Embriaguez. O
número de tabernas era tão grande, que Bom-Senso perdeu a conta das que viu. Em
todas elas a freqüência era sobremodo elevada. Em algumas o álcool fazia com
que os fregueses que se excediam, imitassem os suínos; não podendo suster-se
em pé, deitavam-se pelos cantos ou estiravam-se nas calçadas das ruas. As cenas
que se passavam nesses antros eram as mais tristes e mais comoventes diante
de Deus, mas o Diabo transformou-as em atração para seus vassalos. Então
transformar em álcool nojento e corruptor o pão da esposa e dos filhos famintos
é coisa que divirta alguém?
Espojar-se
na lama ou fazer-se imitador de macaco é alguma atração honesta? Mas tudo isto
acontece na casa de Embriaguez, porque ali o Diabo vive dentro de um copo cheio
que é sorvido com avidez.
Ante
cenas tão confrangedoras, Bom-senso, apesar de haver observado apenas uma
pequena parte da cidade, estava atônito, pois jamais em tempo algum o pecado
se havia amontoado como agora.
Estava
resolvido a fugir daquela Sodoma, quando viu bem perto de onde estava, o que
lhe parecia ser um templo, e muita gente entrando e saindo do mesmo. Sem perder
tempo, Bom-senso encaminhou-se para lá, pensando encontrar ali pessoas que
amassem a Deus, dispostas a recebê-lo. Fêz algumas perguntas aos que entravam
e saíam do Templo, mas ninguém o entendia. Todos fechavam o semblante quando
ouviam falar em Deus Pai ,
em Jesus Cristo ,
Seu Filho, e no Espírito Santo. Por fim entendeu que aquela gente havia
aprendido no Clube da Hipocrisia, a usar uma capa que se chama religião, que
se vendia ali, mas que não tinha relação alguma com o verdadeiro caminho da
salvação.
Aflito,
Bom-senso, quis saber que restaria dos cristãos que em tempo habitavam a
cidade e que adoravam a Deus em espírito e em verdade.
Dirigiu-se
a uma senhora que passava na ocasião e perguntou-lhe se naquela cidade não
morava algum cristão, se não restava coisa alguma do povo salvo. Mal humorada,
a senhora interrogada que tinha por nome Incredulidade, respondeu: Esse povo
que o senhor procura é composto de fanáticos. Noite e dia esse povo atormenta
toda a gente, falando de Deus, do céu, das bem-aventuranças, cantando, louvando
ao que eles dizem ser o Criador, e afirmando que há inferno. Veja se é possível
tolerar essa gente nesta cidade de costumes tão diferentes. Esse povo que o
senhor procura não pertence a esta cidade. Eles mesmos proclamam essa verdade,
dizendo que são peregrinos, que estão de passagem, para a pátria celestial. Se
não fosse o fato de estarem de passagem, como dizem, já as teríamos
apedrejado, mas como esperamos que eles saiam daqui, só por isso os toleramos.
Eles estão por aí, são poucos, mas ainda assim, são demais para falar com tanta
insistência numa tal Verdade que ninguém deseja conhecer.
Bom-senso
tomou alento e regozijou-se por haver Deus conservado alguns que não dobraram
seus joelhos diante de Baal, e seguiu em busca de alguém que temesse
ao Senhor. Aproximou-se de um rapaz e perguntou-lhe pelo povo cristão. O rapaz
olhou-o com admiração e disse: O senhor parece ser estrangeiro; talvez não
saiba que me chamo Ateu e que, como todos os habitantes desta cidade, detesto
os cristãos.
Eles são
conhecidos até pelo olhar. Siga até à Avenida da Graça e ali encontrará quem
procura.
Logo à
entrada da Avenida da Graça, Bom-senso viu que alguém o
olhava, e esse olhar fêz-lhe pulsar o coração, logo que pousou sobre ele.
Aproximou-se para Fazer uma pergunta e teve a surpresa de ser entendido,
pois ali falavam a linguagem dos anjos, tinham a comunhão do céu; estava entre
cristãos e podia dar expansão fio seu júbilo e cantar aleluias.
A nova de
que Bom-senso havia chegado, correu célere de boca em boca e dentro de pouco
tempo, um culto em louvor a Deus se realizava, pela chegada de um irmão.
Agora,
amigo leitor, ao chegarmos ao fim deste capítulo, talvez suponhas que o
assunto seja apenas obra de fecunda imaginação, ou coordenação de pensamentos
que não passam do terreno da ficção.
É
possível que desejes saber onde está situada a cidade do pecado, e se de fato
existe essa estranha sociedade. Entretanto, basta olhar para as condições
morais e espirituais da sociedade em que vivemos, para te certificares de que
essa cidade está bem perto de ti.
A cidade
do pecado é o mundo sem Deus. São as nações que não praticam a justiça. São as
cidades que recusam a mensagem de salvação, as vilas que rejeitam o Evangelho e
os corações que se endurecem para Jesus, e não querem pensar no país da
bem-aventurança onde vive e domina a fé.
Examina
se o estado do mundo atual é melhor do que a descrição que fizemos da cidade do
pecado, e verás que em certos casos a realidade é mais forte do que a
descrição.
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